João Ricardo: Achei Thon Pain muito radical em termos de linguagem,e ao mesmo tempo remete a outros trabalhos que vocês fizeram como o Cartas para não mandar e o Ball – Babilônia. Depois de tantos espetáculos com encenações super flamboyant, Thon Pain Lady Grey chega numa crueza total, sem trilha sonora, apenas vocês indefesos na frente da platéia. Isso é uma retomada? É a depuração de uma linguagem? O que é Thon Pain Lady Grey?
Guilherme Weber: Thon Pain foi feito de maneira muito intuitiva, começou pela paixão pelo dramaturgo Will Eno. O Felipe descobriu um texto dele pela Internet quando estava vendo uma matéria sobre a montagem de uma peça chamada Temporada de Gripe em Londres, e encomendou o texto. O Felipe tem essa sede de conhecer coisas. Temporada de Gripe chegou num momento de crise da companhia, exatamente quando estávamos na sala de ensaio sem saber o que fazer e ficamos completamente apaixonados pelo texto. Quando você vê um Will Eno hoje é como se você estivesse assistindo um Godot ou um Becket na época em que ele escreveu. Consegue aliar conteúdo e linguagem de uma maneira muito precisa. Montamos Temporada completamente fascinados.O espetáculo fala de como a arte e o teatro são linguagens falidas quando se quer falar de verdadeiros sentimentos. Falida como novidade. Ele mistura tudo, a montagem começa a virar falência da arte, do dramaturgo, do diretor, dos atores interpretando, e isso acaba virando a falência dos personagens também. O Felipe conseguiu radicalizar isso na montagem, o tom realista dos atores ia sumindo e ia ficando muito neutro. A ponto de no final o elenco sair e não voltar pra agradecer os aplausos, aí o cenário caia inteiro.
João Ricardo: Acho que o Thon Pain está dentro de todas estas coisas, mas acho que para mim passa da falência, para mim é super refrescante em termos de linguagem.
Guilherme Weber: Acho que ele mostra tão bem a falência que ela acaba se tornando uma novidade. Acho que talvez ninguém tenha refletido tão bem sobre essa falência e sobre os recursos do teatro muito bem feitos.
JR: Estão todos ali, conceitos muito primais da linguagem cênica. Eu achei muito tocante, a idéia que expressa na dramaturgia e no cenário, da identidade das figuras destes personagens serem construídas através dos espaços da linguagem. Um homem construído entre os espaços do seu verbo. É a mesma coisa da construção do teatro não ser no ator e na platéia, mas no espaço. É radicalizado na encenação.
Guilherme Weber: Tanto que eu falei pro Felipe: - Cara não vai dar tempo pra decorar esse texto - e ele falou: - não tem problema - que eu poderia ler. Nesse espetáculo em especial não precisamos ter a preocupação em acabá-lo porque ele fala sobre isso. Sobre essa desconstrução. Optamos pelo monitor, e foi ótimo. Não sei uma palavra de cor. Compreendo o texto porque o estudei muito, mas ele corre no monitor o tempo inteiro.
JR: Vocês ensaiaram quanto tempo?
Guilherme Weber: Eu brinco que ensaiamos 14 anos. Porque acho que eu precisei ter minha carreira toda pra conseguir chegar a esse ponto. Tentar fazer o mínimo possível, manter um tom mais neutro possível e não me movimentar.
JR: E ao mesmo tempo é muito comunicativo
Guilherme Weber: Porque o Will realmente é um gênio. Acho, sem falsa modéstia que a Companhia conseguiu traduzi-lo muito bem no país. Porque os textos não são escritos para serem encenados assim. As rubricas do Will são outras, ele anda pela platéia, vai aqui e ali. Nos imobilizar em um foco de luz foi sugestão do Felipe. Quando saímos a coisa se torna mais íntima, mas a luz não acompanha. Will é tão habilidoso que as únicas indicações de interpretação que ele dá são as pausas, e como esses termos quando são respeitados funcionam. Ele definiu os 2 monólogos como stand-ups existencialistas.O Will veio pro Brasil assistir Temporada de Gripe com a Raquel, mulher dele na época, que foi pra quem ele escreveu a Lady Grey. É engraçado porque hoje eles não estão mais juntos, então a gente monta o espetáculo que fala sobre separação no momento que esse casal realmente se separou.
JR: É hiper teatral, porque na verdade a peça está falando sobre o ator.
Guilherme Weber: É o exercício primeiro de você tentar unir linguagem ao objeto. Pra ver se cola, e geralmente a criança vai pra cadeira, chorando ou só chorando um pouquinho, esquecendo as partes importantes. E no Thon Pain ele fica também se relacionando com temas de infância e sempre se colocando como narrador. O menininho com roupa de cowboy, que foi picado por abelhas. Até o ponto que ele fala, - um homem pensando - e fala o -homem sou eu, depois ele fala o homem e o menininho são a mesma pessoa.
JR: Tu já fizestes muitos personagens deste sentindo na trajetória da Sutil.
Guilherme Weber: Eles sempre são um pouco narradores e construindo sua vida, sua história. É a linha que a companhia seguiu quando começou a pesquisar as narrativas de memória. E aí inevitavelmente por eu ser um ator que fez praticamente todos os espetáculos da companhia, acabei ficando com essa característica.
JR: Como se dá o processo no laboratório de ensaio? Dessa construção dramatúrgica intertextual, cheia de referências?
Guilherme Weber: Acho que fazemos parte de uma geração que se comunica através de referências. O Felipe e eu somos amigos desde muito garotos. Crescemos juntos, conhecendo as coisas juntos, então temos as mesmas referências. Acabei me tornando uma espécie de líder de elenco por ser quem consegue traduzir todas as referências de criação do Felipe.
JR: Me descreve este processo.
Guilherme Weber: A companhia é um uma companhia de criadores, não de atores. Definimos isso a partir do momento que criamos o grupo em 1993. Temos uma companhia de criadores, onde a idéia é a estrela privilegiada. A partir disso chamamos os colaboradores que a gente precisar. As coisas sempre vieram nessa progressão e sempre inspiradas em referências.
JR: É só abrir o site de vocês, e tu estas ali, com o disquinho dos Smiths na mão. É minha banda predileta, e eu acho que os Smiths atendem a uma camada que nunca antes tinha sido atendida. Uma sensibilidade nostálgica, bissexual, suburbana, urbana. Muito contemporânea, cínica e solitária. E acho emblemático tu segurar o disco dos Smiths. Acho que o fascínio da Sutil é atender uma camada que os Smiths atendem.
Guilherme Weber: É tudo muito biográfico. Acho que talvez tenha sido a primeira expressão do sul do país no teatro, genuína, que traga essa melancolia, a estética do frio, essa nostalgia e o sentimento de exílio. Você é obrigado a pertencer a um país, que não dialoga com você. A estética do nordeste define a cultura nacional. E você tem um micro-país aqui no sul, muito urbano, nostálgico, andrógeno e tal e que nunca tinha se expressado de forma tão concreta.
JR: A vida é cheia de Som e Fúria é um turning point dentro da história da companhia.
Guilherme Weber: Em todos os sentidos. É o espetáculo que projetou a companhia, nos tirou do sul e colocou no eixo. Tornou a companhia independente financeiramente, definiu uma linguagem e os nossos parceiros. Mas agora temos muito mais necessidade de fazer espetáculos inéditos. Pegar esses traços biográficos que apareciam como flashes e tornar eles inteiros e únicos. Avenida Dropsie foi uma adaptação do Will Eisner, e é totalmente inédito. Você pode ter qualquer companhia do mundo montando Will Eisner, mas nunca vai chegar naquele estágio.
JR: Como foi a reação das pessoas ao Thon Pain Lady Grey? Porque isso dá uma sacudida no gosto tradicional.
Guilherme Weber: Claro que é uma platéia de festival, com muitos artistas. Eu não sei como funciona este espetáculo em temporada regular com público médio, e mesmo com quem acompanha a companhia que as vezes vem esperando um Som e Fúria. Nem todo mundo se abre pra outras coisas. Temos muitos espectadores que querem Som, querem Nirvana, querem Smiths. Mas está sendo fascinante. As pessoas saem no meio, estranham. Mas quem embarca realmente sai muito transformado.
JR: Quem está por trás da linguagem de interpretação da companhia? Qual é a leitura? Quem são os pais de interpretação de vocês?
Guilherme Weber: Vem tudo um pouco misturado, essas referências não se dividem muito. Vem tudo num caldeirão das coisas que a gente viu a vida inteira. Bergman, Pina Bausch, Tadeus Kantor, e os atores que faziam parte deste grupo todo. Eu como ator, acabei tendo minhas referências estéticas individuais. Teve uma época que a gente usou muito naturalismo. Muito Bergman. Tudo o que eu assisti de cinema mudo. E aí acho que tem um pouco da multiplicidade de referências da companhia e onde isso tudo se mistura numa assinatura, geralmente as referências são mais codificadas.
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