sábado, setembro 29, 2007

Astronauta INSONE


Eu poderia segurar o tempo com uma rede? Ter vivido até aqui só pode ser uma forma de delírio. Delírio-criança: estar sentado e não alcançar os pés no chão. O corpo pequeno-leitoso- magro. Até onde eu me lembro? Objetivamente, tentando buscar a memória, ou melhor, trazendo as imagens até aqui. Engana-se quem disse que eu poderia me lembrar do meu corpo-feto, sonho intra-uterino. Se eu realmente me esforço consigo apenas chegar em camas flutuantes no cosmo. Engana-se quem disse que eu fui gerado de um espermatozóide que entrou num óvulo. Num ato orgânico de sexo dos meus pais. Não. Eu não estava lá. Eu estava navegando no espaço. Apareci no meu berço vindo diretamente de uma escuridão. Uma sensação tão linda, tão suave que achei que nascer fosse apenas acordar novamente na cama embarcação. Cama barco foguete cápsula casulo espacial. Isso pode ser considerado uma memória genuína: eu vim do espaço.
Antes do frenético desenvolvimento das minhas células, das dores nas pernas, das vergonhas repentinas como repentinamente nasciam os pêlos em lugares insuspeitos, dos tesões em brasa viva pelo melhor amigo. Antes de tudo isso.Eu pilotando minha cama em pleno espaço. Um casulo de cobertores, apenas meu rosto de fora, muito triste são as estrelas, são tantas, e estão todas tão longe uma das outras, e é tudo tão grande, só pensando em chego até elas, e mesmo assim , chego apenas a ver as luzinhas, desconheço se são bolas de gases incandescentes, estrelas que morrem estrelas que nascem buracos negros supernovas. as estrelas pra mim são luzinhas distantes que me observam silenciosas, como eu as observo, silencioso navegador do nada.
Então, antes de do meu corpo adolescente explodir do interior do meu corpo criança, me disseram que havia ali no espaço o deus. Me disseram que ele é a imagem e a semelhança do homem. Então se for assim o deus aqui é esse homem barbudo mas também tem o deus caramujo o deus das peles verdes e gosmentas dos homúnculos, o deus raio e o deus de guelras que nada nos abismos. Existem tantos deus quantos existem homens. E de madrugada, afundado nos cobertores ouvindo cada ruído da casa e da rua, todos dormindo e eu com os olhos abertos mesmo sem luz alguma para ser enxergada, na madrugada com o cosmo inteiro dançando na minha cabeça, eu esperava morrendo de medo o momento de ouvir o barulho do elevador. Todos dormindo. Como ele teria entrado no prédio se não tinha as chaves. Por que ele é deus. Por que ele não é desse planeta. Ele está subindo em direção a porta da minha casa. O silêncio perfeito das noites citadinas de cortinas e persianas fechadas. E a batida repetida na porta. Eu paralizado vou em direção ao barulho. Não pode ser mas é, olho por baixo da porta e nada. Ligo a luz do hall de entrada e agora ele sabe que eu estou aqui, não tem escapatória. Ele bate com mais força na porta e eu abro. É um velinho. Pede pra entrar. Senta-se na sala. Pede uma coca-cola. Eu teria um infarto se deus viesse me visitar na madrugada.
Mais ainda. A cama navegando por uns riachos, entrando num túnel, despencando. Eu queria segurar a fúria do tempo com uma rede. Amarrar o corpo para que dentro dele não saíssem mais corpos, para que eu não mudasse tanto, pra não ter que ver o feto morto a criança morta o adolescente morto o homem morto o velho morto e a ossada morta. Como segurar o tempo do corpo com uma rede, laçá-lo, restringi-lo? Não, ele escapa por entre os nós, pelos buracos o tempo cresce líquido, escorre pelos canos do corpo respira a vida das células. Dá e tira. E eu sempre tendo que acompanhar os batizados e funerais de cada corpo que me compõe no tempo. Sempre dando olá e já dizendo adeus.. Sempre angustiado com essa montanha–russa que é a vida.
Ou não. Eu não deixei sequer uma célula para trás. Se eu tivesse um zíper você poderia me abrir e ver um segundo eu mais jovem, e logo depois outro e mais outro até achar um núcleo feto pulsante, ou um núcleo sonho. Mais. Ao mesmo tempo que você abrisse o zíper iria se deparar com camadas que não seguem ordens cronológicas, de repente se assustaria me vendo com cem anos virado em pele e ossos pensantes, ou o rosto húmido de tanto amor compartilhado que ainda nem pressenti. Não sei.
Ou melhor eu sei. Não é nada disso. Nada de corpo ossos brotando do corpo criança. Do corpo ossos brota o corpo carbono brota o corpo atômico. Não. Eu nem saí da minha cama embarcação. E já fico com uma saudade profunda de coisas que nem vivi ainda, saudade das coisas que imaginei imagino e imaginarei. Eu sei que qualquer madrugada eu poderei estar navegando em águas rasas e que meu corpo homem queria ser corpo coisa: terra, nuvem, girassol, baleia, chamas, pedregulho, lamaçal, átomos dos átomos. Nesse momento eu nem precisarei fechar meus olhos: eu sou um astronauta e estarei num foguete rugindo em chamas rompendo a atmosfera. Voltando veloz pro delírio silencioso das estrelas.

4 comentários:

Lisandro Bellotto disse...

esse teu texto é um giro. recheado de poesia e existencialismos
mavioso

Lisandro Bellotto disse...

esse teu texto é um giro. recheado de poesia e existencialismos
mavioso

Anônimo disse...

Meu Deus, que ser escasso é você, de certo que não pertence a este planeta, disso eu já sabia, mas que vc não pensa como nemhum humano, eu não conhecia!

Costurada para dentro disse...

João... que bonito.
Você é pisciano??? Rsrsrsrsr...