segunda-feira, novembro 26, 2007

ficaria feliz se fosse apenas isso


esse menino não pode sonhar. suas pálpebras foram queimadas num sol sem fim de meio dia. impressionante, atravessando a ponte com os pés e a alma descalços.
um menino intoxicado pela luz ofuscado pelo álcool grosso dos butecos, babando palavras contraditórias.
prenhe de uma dor surda, abandonado até a medula.
natimorto em pleno dia:
"eu sou filho do alemão. eu sou filho de índio. eu vou matar josé"
o sangue preto nos joelhos farelento nos cantos da boca recordavam uma fúria ainda viva.
gostaria que você visse os olhos desse menino. perdoe-me, eu não gostaria que você o visse. mas você deveria tê-lo visto.
ele poderia estar morrendo de coma alcoólico, não sei. estava em coma de pé, ao meio dia, locomovendo-se nú, desmoronando-se, pele e ossos e furor de um corpo de homem rasgando entranhas de criança.
homem que urra pressentido através da pele ainda fresca.
imagine você: esse menino, desesseis ou quatorze anos: sem regras. sem pais e sem país. sem comunidade ou descendência. sem nome pois sem língua. sem roupas. só aqueles cabelos brilhosos e pretos e pêlos, no buço, axilas, sexo.
todos caçoaram dele pois seus traços são diferentes sua pele é mais clara. mas o cabelo é de índio. e os lábios grossos também.
sem passado. sem sonhos pois sem pálpebras.
a beleza agressiva do menino caído.
imagine você esse menino.
ele não pode mais sonhar pois suas pálpebras foram queimadas pelo sol do meio dia. mas seu corpo teima em pulsar como essas florzinhas vagabundas que nascem
entre as pedras e esfregam na cara do mundo a coragem efêmera e irracional e estarrecedora da vida em si.
esse garoto é muito bonito e deve ser agora osso.
eu o vi atravessando a ponte ao meio dia.
eu não o vi. mas pressenti o calor da sua chama em páginas esquecidas, um fragmento de história jogado no lixo.
ficaria feliz se fosse apenas isso.

4 comentários:

Olhos Soturnos disse...

COMO SEMPRE ORIGINAL, BIZARRO, ESSE TEXTO CRIA IMAGENS QUE CABERIAM DIREITINHO EM CARTÕES POSTAIS DA CIDADE DE SP!

andressa cantergiani/imbloc disse...

eu vi tudo muito de perto...tão perto que não conseguia ver mais...

Filipe Roloff disse...

Escrito de tal forma que as palavras não são palavras e sim fotos que se movem...deu pra ver o menino que não era menino nem homem e sim uma transcendência de juventude um tanto grotesca...caminhando ao relento...ávido por água, chão, tato...por um nome

Lisandro Bellotto disse...

PORRA VÉIO.DEU ATÉ VONTADE DE TE DAR UM ABRAÇO E TE PROTEGER DO SOL DESESPERANÇOSO