_Teresa e o Aquário
Luiz Paulo Vasconcellos
Eu, que nasci no tempo do bonde e das máquinas Remington, confesso que nunca tive grandes dificuldades para acompanhar o surgimento de obras de alguns dos mais revolucionários ícones do modernismo - Dali, Bracque, Boulez, Ionesco, Beckett, Joyce, Kafka - mas confesso que tenho muita resistência para reconhecer legitimidade e coerência em obras situadas no contexto do pós-modernismo. Para mim, pós-moderno passou a ser apenas um recurso retórico, um discurso acadêmico, sem uma obra sequer, fosse em teatro, cinema, literatura, música ou artes plásticas, que configurasse, desse vida e representatividade a tal conceito. Até a estréia de Teresa e o Aquário, baseada num conto de Luciano Mattuela, com direção de João Ricardo, agora pós-modernamente auto-intitulado João de Ricardo. Mas deixemos de lado a inutilidade da partícula de ligação e voltemos à obra do jovem encenador.
João Ricardo - foi assim que o conheci e é assim que o tratarei até a morte - foi no início de sua carreira aquilo que os franceses chamam de enfant terrible, ou seja, um inconformado com as linguagens vigentes, um pesquisador, no melhor sentido da palavra, de narrativas que agregassem meios diferentes, corporais, visuais, sonoros, abordando temas geralmente transgressores ou, pelo menos, fora das convenções usuais. Foi assim que ele dirigiu Serpente: Pulp & Nelson Rodrigues, do próprio Nelson, Shopping and Fucking, de Mark Ravenhill, Extinção, a impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo, livremente inspirado numa peça de Nicky Silver, e Andy/Eddie, de Diones Camargo, seu último espetáculo antes de se mandar para Campinas para fazer o Mestrado. Dois anos depois ele está de volta e nos trás esta Teresa e o Aquário - como posso definir? - a mais concreta, orgânica e representativa experiência pós-moderna que já tive a oportunidade e o prazer de assistir nesta minha já longa vida pós-bonde e pós-máquinas Remington.
Pós-modernismo, pelo menos para mim, sempre se aproximou mais de uma negação do que de uma afirmação com identidade própria. Ou seja, ser pós-moderno era não ser isto ou aquilo, o que o espetáculo de João Ricardo vem negar. Ou polemizar. Ou contestar. Não importa. O que importa é que o espetáculo existe, tem forma e conteúdo, se fundamenta num princípio de fusão de linguagens, embora mantendo o pés na terra do referencial dramático. Mesmo que pós-dramático. Deu pra entender?
Em Teresa e o Aquário não há narrativa contínua, ou seja, não há uma história sendo contada, começo-meio-fim, causa e conseqüência, essas coisas, mas na medida em que os recursos de linguagem avançam - ator, gesto, movimento, espaço, palavra, corpo, vídeo, foto, cinema, música, som, luz - os signos vão adquirindo sentido e, automaticamente, você, espectador, vai formando na sua cabeça uma história, a sua história, talvez até diferente da que está sendo formada na cabeça do cara que está a seu lado, mas que, no fim de contas, tece o desenvolvimento narrativo. E aqui, então, as coisas se fundem. Relato, estética, política, psicologia, comportamentos, emoções, valores, códigos, tabus, tudo vai se ligando na medida em que o jogo das linguagens vai avançando, acelerando, os silêncios vão se impondo, as formas vão se contrapondo. Afinal, não seria o pós-moderno aquilo que apresenta o inapresentável? No espetáculo de João Ricardo são as formas que nos sugerem os sentidos, criam o elo de ligação entre sujeito e vontade, vontade e emoção, emoção e razão, razão e certeza, certeza e possibilidade.
Como todos nós sabemos, teatro é uma arte coletiva. E o coletivo em Teresa e o Aquário é a soma de individualidades poderosas: Sissi Venturin e Lisandro Belotto, os atores, no melhor de suas carreiras; Diones Camargo na dramaturgia; multimídia de Bruno Gularte Barreto; iluminação de Liliane Vieira e música de Roger Canal.
Última cena: a platéia. A do Theatro São Pedro, na noite da estréia, não era necessariamente uma platéia de teatro, muito menos de um tipo de teatro, teatro-arte, teatro-pesquisa, teatro-porrada, teatro-transgressão. Havia o fato de ser o resultado de mais um Prêmio Habitasul de adaptações literárias, havia um desfile de modas antes da apresentação, essas coisas. Pois às dez da noite começou o espetáculo. E durante duas horas o silêncio que se impôs era desconcertantemente eloqüente. Era comovente. Ao final, aplausos, sinceros e insistentes. O recado estava dado. Cada um havia entendido alguma coisa. E todo mundo estava emocionado. Valeu, João de Ricardo.
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