terça-feira, outubro 16, 2007

Memória e imaginação (trinta ítens pra trinta anos delirantes)


1- meu corpo-menino menor ainda pois deitado na cama de casal, dos meus pais, na casa de praia, na beira do mar. Os adultos todos atarefados e eu preguiça pura, olhando fixo para uma bola de plástico: e se ela pudesse se mexer sem que eu a tocasse? e ela mexeu, rodou devagar sob seu próprio eixo e eu saí correndo.

2- Minha avó me contou que eu chorava a noite pois ouvia o canto das baleias. o som do vento uivando nas dunas que o muro da casa mal continha. a pequena floresta de pinheiros. fiz umas armadilhas ali, buracos com gravetos em cima, palha e a areia da praia. alguém poderia quebrar o pé. eu mesmo me joguei na armadilha. o terreno cedeu um pouco, pulei, os galhos quebraram e fui engolido.

3- Uma água viva entrou na minha sunga e me queimou a bunda. Minha avó tinha que ter contado pro filho do vizinho. ele ficou pelado na minha frente balançando o pinto. a velha avó dele olhou minha mão e disse, tens um “eme” escrito aqui, que é de morte mas de também de mãe. eu saí correndo. o filho do vizinho não tem vergonha eu tenho. eu perdi os meus carrinhos na praia. Fiquei olhando as nuvens e ouvindo o mar rezando pra que deus me trouxesse eles de volta. eu rezei e fiz promessas. descer uma escada gigantesca de joelhos em cada degrau rezando um pai nosso para que as minhas sementes que estavam nadando na piscina não engravidassem a tia gorda. incesto é um crime muito hediondo. De joelhos, um pai nosso por degrau.

3- De tardezinha, da janela da lavanderia, quando o céu ficava vermelho roxo eu via ali, parado no ar, flutuando de prata no céu, um disquinho voador, de ferro, perfeito, sombreado, uma imagem muito nítida, inclusive a cúpula de vidro. durante as madrugadas eu me levantava e ia para a janela pra tentar ver eles. eu vi umas luzes fortes no céu, umas estrelas que voam baixo. A estrela mais forte de todas, a primeira que aparece, em cima dos carros cheios de sereno da vizinhança, na frente da janela do quarto, antes de sair o sol, antes do cantar dos passarinhos, antes da luz azulada que vem rompendo a noite, ela ficava parada ali me observando, dizia que ia começar o dia. Muita falta de ar eu sinto dona estrela e o sabiá já começando seus assovios, eu sendo levado nos ombros do meu pai pro hospital, como um boneco, gordo de tantos casacos e cachecóis, fim da madrugada com o vento gelado batendo no rosto pela janela do carro. Tentando respirar. Pra que ir direto ao hospital se podemos passear nas ruas vazias e ver os vitrais da igreja central e as padarias de portas fechadas chaminés abertas expelido cheiro de pão?

4- Me perdia sempre no supermercado. A cada saída uma perdida. Uma coleção de bichos no formol. Um deles era uma larva gorda e branca, com o passar do tempo ela virou um pedaço de cocô. A geladeira ligando e desligando durante a madrugada inteira. Umas sementes que eu joguei na floreira viraram flores. Uma semente de abacate que eu plantei virou uma árvore que rapidamente já estava muito maior do que eu, apesar de eu ser bem mais velho que ela. Onde foram parar aqueles bichos recheados de isopor que minha mãe pendurava nas paredes do meu quarto?

5- as nuvens no inverno gaúcho passam gordas e pesadas de chuva nos fins de tarde depois da escola. me dava uma tristeza aquelas fins de tarde. Voltar pra casa escura, infestada com aquele cheiro de flor. Mãe, isso é florzinha de cemitério, não é pra ter em casa.

6- Eu queria chegar no outro dia e não ter sido trocado por alguém que não sou eu. Nas tempestades de raio pessoas são trocadas. Mesmo corpo conteúdo diferente. Eu devo ter sido trocado na tempestade, estava relampejando muito eu marquei de fazer um sinal no dia seguinte, na escola, para que o meu melhor amigo ficasse sabendo que eu continuava o mesmo. não dei um sinal algum, tão pouco ele. Ele. Ele deve ter sido trocado.

7- um charuto, de metal límpido com uma luz na ponta, parece um balão ou um dirigível, mas não. voava baixo demais, cortando o chumbo próximo do céu prenhe de chuva, na volta do super, eu vi sim, pela janela do carro dos meus pais.

8- meu quarto era pintado de azul escuro, simulando o fundo do mar. pedras de isopor pintadas passavam por pedras submarinas, cobertas de seres vivo multicoloridos: corais peixes e conchas. em um buraco vivia uma moréia negra. através de dança, algas cor de rosa, criavam o refúgio perfeito para ela, uma fenda no ventre da pedra. Havia também luzes de néon que desenhavam peixinhos na parede. (MEU DEUS EU BOTEI NEONS NA PAREDE DO ANDY/EDIE jurando que estava sendo influenciado pelo Dan Flavin. O QUANTO DE FANTASIA INFANTIL TEM NAS MINHAS PEÇAS?) Braços de manequins pintados de dourado serviam para pendurar minha mochila, boné ou o uniforme do colégio azul marinho com listras laranja, eu quero ir pra aula de escafandro. Não consigo respirar.

9- Percorrer lugares abandonados no sonho. Um colégio de muralhas de pedra vazio. Todo aquele espaço, ginásios corredores laboratórios museus banheiros teatro. As escadarias sótãos e porões. Equipamentos empoeirados, bichos empalhados bichos em vidros virando cocô com o tempo. a biblioteca com móveis de madeira escura e os janelões de vidro fosco sempre lacrados. homem e seus símbolos manual da auto-destrutividade humana. Atrás das cortinas em farrapos de veludo vermelhas moram fantasmas.

10- Ficar tardes inventando histórias em casa olhando as figuras já tão vistas da Enciclopédia da Luta Contra o Crime, eu pintei os olhos dos criminosos de vermelho. Desenhar monstros em papeizinhos, monstros da tv monstros dos livros monstros do espaço diabos caveiras e palhaços. Desenhar dinossauros e monstros e depois colar tudo nas paredes. A psicoterapeuta disse em segredo pros meus pais que eu era suicida. Eles me tiraram da terapia. Que ações de criança eu ainda faço? Minhas paredes ainda estão lotadas de monstros.

11- Itinerário de infância: imaginava a minha vida como um filme. No cartaz uma foto em destaque já que eu sou o principal. Os outros personagens que eu conhecia ao meu redor, menores, rostos em fotografias do tamanho da sua importância, a família, os amigos e o professor de educação física.

12- nunca gostei de heróis. os heróis são chatos e sempre ganham. Eu não ganho sempre. Queimei o rosto de um Comandos. Ele foi torturado e virou do mal.

13- Meus irmãos ganhavam uns presentes que eu adorava. A luva do Freddy Krugger. O boneco de borracha, monstrinho que mexe os olhos, o marrom, o mais perfeito.

14- No meu laboratório caseiro já assassinei muitas formigas com eletricidade. E aprendi que as formigas voltam após a morte. Formigas- zumbis são um inferno. O melhor mesmo é esmagá-las.

15- Fiz uma tatuagem no meu irmão com a ponta de uma faca incandescente

16- Apanhei uma boa surra por isso

17- A idéia era marcá-lo com um sinal que não desaparecesse nem quando ele ficasse forte como o Rambo. O Rambo é tão forte e tem tantos cortes pelo corpo...

18- Um outro irmão nasceu e morreu. Vi ele mortinho no corredor e falei pra minha mãe: as vezes vejo o Juliano.

19- Os cadáveres ficam naquelas casinhas do cemitério, eles não tem pele, homens de músculo. Meu irmão tá na casinha também, eles tem cheiro ruim. Homens de carne que é igual a carne que a gente come. Os coveiros ficam ali o dia todo passando perfume neles.

20- Tive que optar não ser um monstro.

21- Por vezes eu sou um monstro. Por vezes não.

22- Como é isso de se perceber homem e coisa? Carne e imaginação? Herói, não.

23- Brincar de sapo. Brincar de amor. Brincar de lembrar.

24- Ouvir músicas retrô e achar muito bonito, quando o sol bate de tarde no quarto da minha mãe em cima da cama eu gravo músicas do rádio, meu corpo menino menor ainda pois deitado na cama dos meus pais. Esparramado sobre o luminoso cobertor abóbora, orelhas amplificadas pelos fones um mickey-dj. fiz muitas fitas "muzicas de zuzeso". Retrô antes e retrô agora. Eu faço cds pros meus amigos. Faço cds pros ensaios. Minha mãe mandou o cobertor por sedex.

25- To me mijando. Aquela solidão que dá quando o último canal sai do ar e aparece o colorbar, são apenas três e meia da manhã e ainda vai demorar para amanhecer. Vai estourar o xixi e eu estou petrificado ouvindo o chiado da TV fora do ar.

26- Eu não tenho mais vontade de ir a aula.

27- Parece que tem um polvo enrolado no meu peito.

28- Quando eu fico com asma eu pareço um edifício com as janelas fechadas.

29- Filmes de terror. mãos com unhas de ferro são um fetiche bárbaro. um dos meus primeiros papéis importantes: um monstro que aparecia num quadro ameaçando a todos com o corpinho ossudo de adolescente, muita vergonha, raiva e unhas de punhal. Me disseram logo que eu não era um bom ator. o filho dele era um bom ator. minha primeira paixão foi um bom ator de treze anos com um papaizinho bem orgulhoso. ele virou um homem horroroso e eu continuo sendo apenas um ator.

30- Estas foram as coisas doces. Como enfiar as mãos numa poça de lama, brincar com água, com fogo, com ferro dando golpes de facão na árvore para vê-la chorando branco. das outras não ouso. nem em pensamento. Doce como ouvir aquele piado horrível que sai de lá que pássaro fantasma noturno. Os assovios começavam a vir muito próximos, o farfalhar de asas na janela, era o piante.

sexta-feira, outubro 05, 2007

Surpreender-se com um velho amigo

Nós estávamos brincando sem brincar, conectados com a matéria física da imaginação. corpos imaginantes, homens feitos de imaginação. Se pensar é esculpir como falava Beyus, o teatro pode ser uma grande escultura formada no abraço dos corpos imaginantes da platéia e dos performers.
Uma noite muito estrelada: saímos de madrugada para jogar. A noite não estava estrelada, nem era noite. Não interessa, pois fêz-se noite pois fechamos os olhos e logo umas luzinhas ligaram-se no espaço. Pisca-piscando. Um baile. Divertimentos noturnos, contar histórias, dançar imóvel, correr pelado, cantar com os sapos, um pic-nic de comidas de barro.
Nosso cotidiano banal contém o mundo e uma esfera poética insuspeita como a técnica dura também contém um território de mistério onde o que se é não interessa, basta ser. Um espetáculo de teatro pode ser justamente uma caminhada do cotidiano ao sonho, onde um não anula o outro. Razão emocionada, a lógica do delírio. O adulto não anula a criança ou o velho. A imaginação não anula o pragmastimo do cotidiano: é tudo vida. Talvez seja nesse paradoxo que possa nascer uma relação de arte.